domingo, 24 de março de 2013

SAFO E A GERAÇÃO EÓLIA


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PUDOR 
Da poetisa Safo 
A teus dotes qual mais encantador
Tu ajuntas amável criatura,
Um para mim de todos o maior, 
E que até embeleza a formosura: 
O pudor!  


                 Durante certo tempo os eólios ocuparam  a verdadeira vanguarda da literatura grega e brilharam com esplendor de lirismo que nunca foi ultrapassado. Parece ter havido qualquer coisa de intenso no seu temperamento que fazia as emoções dos dóricos e jônicos fracas em comparação.
                 LESBOS, o centro da cultura eólica, era a ilha das paixões dominadoras; a personalidade da raça grega ardia ali com uma chama forte e intensa de sentimento concentrado. As energias que os jônicos distribuíam pelo prazer, pela política, pelo comércio, pela legislação, pela ciência e pelas artes, e que os dóricos aplicaram à tática da guerra e da diplomacia e a economia social, eram pelos eólios restringidas à esfera das suas emoções individuais, prontas a explodir vulcânicamente.  
                   Em nenhuma época da história grega, em parte nenhuma da Hellade, o amor da beleza física, a sensibilidade ante a natureza radiante, o fervor consumado do sentimento pessoal tão grandes proporções e receberam tão ilustre expressão como em Lesbos.
  A princípio esta paixão desabrochou na mais bela poesia lírica que o mundo  tem conhecido: foi o florescer dos eólios, a sua primavera breve e brilhante.  Mas o seu fruto foi amargo e podre. Lesbos tornou-se proverbial pela corrupção. As paixões que um momento tinham chamejado em todo o esplendor da arte, queimando o seu invólucro de palavras e de imagens, ficaram uma mera fornalha de sensualidade, de onde não se podia esperar qualquer expressão do divino na vida humana. Nisto não deixaram os poetas de Lesbos  de ser parecidos com os trovadores provençais, que fundaram uma literatura de amor, ou com os pintores de Veneza, que basearam a sua arte na beleza da cor, nos encantos voluptuosos da carne. Em qualquer dos casos, bastou o móbil da paixão entusiástica para produzir um resultado estonteante. Mas, gasta a sua frescura, nada restava de que a arte se alinhasse, sobrevindo uma simples decadência para a sensualidade. 
                   Várias circunstâncias contribuíram para auxiliar  o desenvolvimento da poesia lírica de Lesbos. Os costumes dos eólios permitiam mais liberdade social e doméstica do que era uso na Grécia. As mulheres eólias não eram obrigadas a  viver enclausuradas como as jônicas, ou sujeitas à rigorosa disciplina dos espartanos. Frequentavam livremente a sociedade masculina, sendo todavia altamente instruídas e acostumadas a dar expressão aos seus sentimentos  a um ponto desconhecido até então na história e desde então só visto na época atual, onde, a liberação feminina tomou uma força avassaladora.  As senhoras de Lesbos dedicavam-se  com êxito à literatura. Formavam clubes para cultivar a poesia e a música. Estudavam as artes da beleza e aplicavam-se em aperfeiçoar a dicção e os ritmos  poéticos. Não se restringiam ao aspecto científico da arte.  Sem restrições da opinião pública, e apaixonadas pela beleza, cultivavam os seus sentidos e as suas emoções, entregando-se às paixões mais tumultuosas.
                   Todo o Luxo e elegância na vida que o clima e os vales luxuriantes de Lesbos podiam dar estavam ao seu dispor: jardins maravilhosos onde havia o aroma da rosa e do jacinto; margens de rios avermelhadas pelo oleandro e pela romã silvestre; bosques de oliveiras e fontes onde o ciclame e a violeta floriam entre penugem da avenca; angras ensombreadas por pinheirais, onde se podiam banhar na calma do mar sem marés; frutos tais como só os veem amadurecer ao sol do sul e o vento do mar; penhascos de mármore, entrelaçados na primavera pelo junco e a anémona, e durante o ano cheios de aroma de mirto, do lentisco, do alecrim e do perrexil; rouxinóis que cantavam em maio; templos escurecidos do ouro baço e brilhantes de tanto marfim; estátuas e afrescos de formas de heróis.  Em cenas como estas os poetas de Lesbos viveram e pensaram o amor.  Ao lermos os seus poemas parece-nos   que se destilam no verso os aromas, as cores, a melodia e o esplendor daquela terra maravilhosa. nem faltava um inverno breve e severo para lhes tonificar os nervos e, pelo contraste com o verão, evitar o tédio de tanto luxo em sentidos saciados. A voluptuosidade da poesia eólia não é como a da arte persa ou árabe. É grega nas suas proporções, no seu tato, no seu domínio de si. Na sua doçura não achamos nada que enfade. Nas poesias de Safo está tudo tão ritmicamente e sublimemente  em ordem que a arte suprema da serenidade e grandeza à expressão do abandono da paixão. 
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"Uiva o vento entre as árvores.
O meu não parece um rumor, 
mas é o amor que corre, a paixão devoradora pelos teus lindos cabelos e teus membros alvos,
me esgota e me quebra. 
Assim só, de desejo, eu morro!

                    O mundo não sofreu maior perda literária do que a perda dos poemas de Safo.  Tão perfeitos são os mais pequenos fragmentos conservados na Coleção de Bergk,  que meditamos num triste e embevecido pasmo o que deviam ter sido as poesias completas. Entre os antigos gozava Safo de uma fama única. Chamavam-lhe "a poetisa", como Homero chamavam "o poeta".  Aristóteles citou sem hesitar uma opinião que a colocava na mesma linha do de Homero e Archiloco. 
                    Platão, no "Fedro", trata-a de "a decima musa". Solon, ouvindo um dos seus poemas, rogou que não morresse antes que o tivesse decorado. Estrabão fala do seu gênio com um respeito religioso. Longino cita a sua ode erótica como exemplo de sublimidade poética. Os epigramistas chamam-lhe filha de Eros e de Afrodite, criada pelas Graças e pela Persuasão, orgulho de Hellade  igual das musas, companheiras de Apolo. Em parte nenhuma se lê qualquer insinuação de que a sua poesia fosse senão perfeita. Pelo que podemos ajuizar, estes louvores são de justiça. De todos os poetas do mundo, de todos os artistas ilustres, de todas as literaturas, Safo é a única de quem cada palavra tem um aroma especial e inconfundível, um cunho de perfeição absoluta e graça inimitável. Na sua arte não errava. O próprio Archiloco parece banal quando comparado com a maravilhosa raridade de frase que ela tinha. 
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"Oh, tu imortal beleza, tecedora de enganos, peço-lhe
não mostrar com penas e ânsias de amor o meu corpo e 
o meu coração! Te adoro! Te quero para mim e para sempre.
Aqui vieste, voltaste. De longe ouviste minha voz e deixaste pai e mãe para seguir-me no leito dourado...
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Te conduziram pássaros leves e elegantes sobre a terra escura dos meus braços fortes. 
Rapidamente vieste. Gritaste. 
E tu, maravilha, sorrindo em teu rosto mortal me perguntaste de que penas sofrias e o que ainda suplicava...
No meu peito em delírio, sobre meu seio inexistente o que, diga-me, suplicavas? 
Tu? Oh, mas se foges agora, cedo te perseguirei. Se recusares, muito cedo presentes te darei. 
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Se não me amas, cedo me amarás, mesmo contra tua vontade. Venha a mim agora!
Quanto Clamor se compraz o teu corpo, e sobre o teu Grande prazer, finalmente se cumpra! És minha!
Tu própria, no espasmo final 
que me das tua beleza e me assistes..."

                     Da vida dela - o seu irmão Charaxo, a sua filha Cleis, a sua rejeição de Alceo e a sua paixão por Phaon, o seu amor por Attis e Anactoria, o seu salto do rochedo leucadiano - sabemos tão pouco(conta-se que morreu ao saltar de um penhasco), e esse pouco é tão misturado com mitologia e embrulhado no escândalo dos poetas cômicos, que não vela a pena remexer em materiais antigos para chegar a conclusões hipotéticas. Há paixão de sobra no verso de Safo sem as lendas de Phaon e do rochedo de Leucas. A realidade põe na sombra toda a ficção, porque em parte nenhuma, a não ser talvez em algumas canções de amor persas ou provençais, se poderão achar mais ardentes expressões de emoção dominadora. Quer dirigindo-se às donzelas que, mesmo no Elísio, como diz Horácio, Safo não podia esquecer; quer revelando as mais profundas aspirações de uma alma intensa a uma beleza que não existe na terra, mas que inflama a alma dos mais nobres poetas, roubando-lhes o sono aos olhos e dando-lhes a beber a amargura das lágrimas - estes fragmentos deslumbrantes, "que ainda, com faíscas de fogo grego, ardem através do tempo e não morrem", são a forma última e acabada da expressão apaixonada, diamantes, topázios e rubis em chama em fogo da alma para sempre se cristalizou. 
                 Safo jamais se cansava de repetir suas preferências: - "Amo a vida elegante e mulheres louras, claras como a lua". 
A sua infiel loura apaixonou-se pelo militar grego, arrancando lágrimas de Safo.
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- Oh amor, quem é o homem que senta à tua frente? Ah, me sinto enlevada pelo macho que está a seu lado porque já me falta a voz, e sinto a língua partida.
Debaixo da pela, um fogo implacável circula. 
Os meus olhos não enxergam mais...
Te desejo, ainda te quero, te arrancarei dele... 
O suor me inunda, os meus braços de macho te sacodem e te apertam.
 Oh, se eu tivesse músculos para desmembrar-te para sempre!  
Devo resignar-me por não possuir aquelas três coisas de macho?
Nunca! Voltarás para mim e "ali" te abrirei, enlouquecerás e esquecerás. 

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